domingo, 1 de dezembro de 2013

A carta

 

Quando era adolescente e ideias revolucionárias pairavam sob sua cabeça esperando pousar e criar raízes, ela escreveu uma carta. Escreveu tudo no ímpeto da fúria, traduzindo em palavras todas as suas inquietações para com o mundo e para consigo mesma. Xingou o Seu Nestor, que vivia dando pitaco nas suas andanças; teorizou sobre o porquê das suas tias se importarem tanto com os seus quilos a mais; deu provas conclusivas de que não importava o quanto tentasse, seu desempenho em matemática sempre seria horrível. Era uma carta bem elabora de 15 páginas, escritas à mão com uma caneta preta e guardava nas suas linhas toda a raiva juvenil. Todavia dentre todas as acusações e injúrias, grande parte da carta - quase a metade - era direcionada à sua recém paixonite e analisava todos os pormenores, à la Sherlock Holmes, dos seus três encontros com ela.

O primeiro fora na esquina da rua onde morava. Um observador desatento não o teria notado, mas ela, que sempre andava alerta e à espera de qualquer surpresa inconveniente, viu-o passar por si como um raio e ainda o espreitou pelo canto do olho, quase tropeçando por causa disso. Nos sonhos daquela noite, aquele rosto lhe apareceu e ela acordou intrigada com o seu próprio inconsciente. 

Quando uma mão pesada tocou seu ombro e sua cabeça virou para olhar quem era, não teve dificuldade de se lembrar do garoto que vira outro dia na rua, enrubescendo em seguida ao pensar involuntariamente no sonho que tivera e perguntando-se o que ele pensaria se soubesse. Sentou ao seu lado e contou-lhe que acabara de se mudar para  aquele prédio. "Estou incomodando? Se sim, sento em outro lugar." "Não, imagina."  Uma pergunta difícil permeou a cabeça da garota logo depois que acabou a conversa bem-humorada de quarenta minutos deles: a simpatia era gratuita ou ele estava a flertando? A linha que separava as duas coisas era tênue e ela preferiu não tirar conclusões por ora, esperando por outra oportunidade. 

A outra oportunidade, entretanto, não foi bem como esperava. Quando estava sentada no mesmo banco, ele veio informá-la que, infelizmente, mal chegara ali e já ia se mudar novamente. A avó estava doente e a mãe queria ficar perto dela em tempo integral. "Puxa. Melhoras para a sua avó." "Obrigado." A conversa daquela vez foi mais rápida e constrangedora, como se os dois estivessem se perguntando internamente se deveriam ficar tristes pela separação ou se não houvera tempo para isso. 

Foi uma semana triste para ela, que rememorou os encontros várias e vária vezes, praguejando o destino por ter sido tão mau e impedido que ele se encantasse por ela tanto quanto ela se encantou por ele. Ficou imaginando o que poderia ter acontecido se ele não tivesse ido e isso a acalentou antes de dormir diversas noites. Descobriu-se apaixonada depois da sua ida e sabia que isso era horrível, porque era uma ida sem volta. As chances de reencontro eram ínfimas. 

Então escreveu aquelas 15 iradas páginas. Começou relatando os infortúnios de gostar de alguém que nunca voltará e depois, como se a chuvinha fraca tivesse virado tempestade, esbravejou acerca de todas as injustiças que acometiam o mundo. Escreveu como se não houvesse amanhã, como se aquelas palavras estivessem engasgadas há muito tempo, como se aquela carta fosse a carta que mudaria o mundo. 

Envergonhada após de ler tudo que com tanto afinco defendera, queimara o trabalho de tantas horas achando-se a garota mais idiota do mundo. Ela ainda lembra, apesar de tantos anos, do cheiro de papel queimado que ficou impregnado nos seus cabelos. Lembra-se mais nitidamente, como se fosse ontem, das batidas pesadas na porta da sala. Sabia que a mãe iria sentir aquele cheiro e iria perguntar o que acontecera. Droga!

Mas não era a mãe.

Era ele.

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